Um olhar sobre a emancipação e os direitos humanos em "Para a questão judaica"
DOI:
https://doi.org/10.21708/issn2675-8423.v1i2r9816.2020Palabras clave:
Emancipação humana. Direitos Humanos. Karl Marx. Para a questão Judaica.Resumen
MARX, Karl. Para questão judaica. Tradução: José Barata Moura. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
A presente resenha trata-se de uma metalinguagem, eis que o texto em comento é uma resenha crítica às ideias que Bruno Bauer expôs em A questão judaica, na forma de ensaio escrito por Marx, em 1843. A obra se mostra relevante para o estudioso e pesquisador do Direito por possibilitar, em meio a complexas questões, uma reflexão crítica sobre a emancipação humana e os direitos humanos dentro do pensamento marxiano.
Toma-se a obra marxiana no sentido atribuído por Netto (2009), como uma teoria da sociedade burguesa inserida num contexto específico: a dominância do modo de produção capitalista. Essa teoria, portanto, foi formada a partir de um complexo de hipóteses verificáveis e da análise histórica concreta.
A partir do conteúdo de Para a questão judaica, juntamente com o apoio de teóricos marxistas, pretende-se tecer comentários críticos sobre a realidade jurídica, notadamente, a realidade constitucional brasileira, posto que há percepções que se mostram pertinentes mesmo que retiradas do contexto temporal e espacial da obra. Salienta-se, entretanto, que as devidas mediações serão feitas para que não se incorra em um anacronismo.
O texto marca, assim, a separação ideológica de Marx dos Novos Hegelianos e dos irmãos Bauer, quando o jovem de 25 anos era um democrata radical em oposição ao liberalismo e começava a estabelecer as concepções sobre a revolução proletária. Portanto, o escrito dá-se em meio a transição do autor da democracia radical para o comunismo, versando sobre a emancipação humana que consistirá em seu programa.
O pano de fundo da controvérsia entre filósofos é a restrição dos direitos civis e políticos aos judeus, tais como a ocupação de cargos públicos, na Prússia de meados do século XIX, um Estado cristão. Discutiam, pois, a questão da emancipação daqueles. Enquanto Bauer acreditava que o problema relativo aos judeus era de ordem teológica, Marx percebia que era de cunho político-social. O primeiro acredita que, para se emancipar politicamente, os judeus precisavam se emancipar da religião, enquanto o segundo vislumbra uma verdadeira crítica aos direitos humanos através da análise, ainda inicial, da luta de classes.
Dessa forma, Marx se utiliza do método dialético, analisando o fenômeno social por diversos ângulos e em sua interação com outras searas. Entretanto, ainda não se encontra em seu auge o materialismo histórico-dialético, que foi fruto da parceria entre Marx e Engels, capaz de produzir uma ciência das classes trabalhadoras oposta ao domínio da ciência moderna, permeada pela sociabilidade burguesa. O método, assim, contempla as categorias da totalidade, da historicidade e da dialética, negando a neutralidade do sujeito, relacionando os momentos político e econômico e apontando as formas históricas enquanto vinculadas a interesses de classe em contradição na sociedade (VALENÇA, ARAUJO & FREITAS, 2019).
Nesse sentido, é importante observar que a orientação teórico-metodológica do materialismo histórico-dialético não criou uma epistemologia, mas uma ontologia do ser social (YAMAMOTO, 2016). Isso significa que, ao compor seu legado, Marx não deixou um método ou ciência que pudesse orientar a pesquisa, sobretudo jurídica, mas a forma como conduziu seus estudos possibilita uma maneira diferente de se compreender o ser na realidade, o que se pode observar da obra ora analisada.
Reiterando o que foi colocado acima, ao longo de Para a questão judaica, discute-se a questão da emancipação pretendida pelos judeus. Marx vai desconstruindo as ideias de Bauer ponto a ponto, trazendo citações do colega, que acreditava que ninguém estava emancipado na Prússia, razão pela qual seria egoísta da parte dos judeus exigir uma emancipação particular. Na visão deste, os judeus deveriam abdicar de seus preceitos religiosos antes de exigir do Estado que abdicasse de seus preceitos cristãos. Assim, a religião deveria permanecer na esfera privada, pois o Estado, que pressupõe a religião, não seria um Estado verdadeiro (MARX, 2009).
O que Marx observa, ao contrário do amigo, é que o cerne da questão não está nos sujeitos que devem ser emancipados ou que devem emancipar, mas na natureza emancipatória. O debate deveria sair da seara teológica para consistir em verdadeira crítica. Haveria, dentro disso, uma confusão entre a emancipação política e a emancipação humana. A emancipação do Estado (política) não seria uma emancipação consumada, eis que a vida no Estado político se encontra em oposição à vida material do Homem. Embora exista igualdade política, as desigualdades continuam a existir no âmbito da sociedade civil (MARX, 2009).
Portanto, para Marx, o Homem leva uma vida dupla, uma na comunidade política e outra na sociedade civil. A questão judaica, nessa ótica, deveria residir nesta dicotomia. Importante observar que o autor encara a sociedade civil como o local em que o homem privado considera os outros homens como meio e degrada a si próprio à mesma condição. O reconhecimento da emancipação política até ali representa um avanço na ordem mundial, mas não se trata de uma emancipação real e prática (MARX, 2009).
A emancipação política, assim, é ligada aos direitos civis. Nega-se a ideia de que os direitos humanos são dados pela natureza e não frutos de um processo histórico de lutas. Marx observa que os direitos humanos, em sua origem norte-americana e francesa, têm natureza burguesa, conferidos ao homem egoísta, ao homem em si mesmo, separado de sua comunidade. São centrados, dessa forma, na liberdade, um direito que não liga os homens, mas que os separa, uma liberdade associada estritamente à propriedade privada e que exclui os demais. Só o homem burguês/proprietário é considerado o homem “propriamente dito” (MARX, 2009).
O que se pode perceber é que a prática da revolução burguesa, especialmente no que concerne aos direitos humanos, se encontra em contradição com a sua teoria. Essa revolução dissolveu a sociedade civil sem fazer uma crítica de seus componentes, mesmo buscando uma transição em relação aos privilégios contidos no período da feudalidade. Como exemplos, tem-se que o homem não liberto da religião, recebeu a liberdade da religião, não liberto da propriedade, recebeu a liberdade da propriedade, confirmando-se a dualidade já referida entre o ideal e realidade material e concreta.
Percebe-se que toda a emancipação política é a redução do indivíduo a membro da sociedade civil, isto é, a homem egoísta, enquanto, por outro lado, há também o cidadão, a pessoa moral. Em contraste, a emancipação humana, a verdadeira emancipação, se consuma quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato, de forma que sua vida empírica e seu trabalho, suas relações são um todo. O ser é genérico e reconhece sua força própria como uma força social que não se separa de sua força política. A ideia de emancipação humana aqui trabalhada será a base do programa do comunismo (MARX, 2009).
O que prevalece da análise, portanto, é a questão da igualdade fática. Embora, por exemplo, todos tenham o direito (civil), em abstrato, de adquirir propriedade comprando terra, nem todos efetivamente podem adquiri-la. A conclusão é que o Estado acaba legitimando as desigualdades sociais através da igualdade perante a lei. O problema reside, assim, na forma da sociabilidade capitalista. A emancipação política contribui, dessa forma, para a manutenção de privilégios burgueses, mantendo o status quo.
A emancipação humana se mostra como mais do que um direito, mais como um fim que possibilita que a desigualdade seja extinta para além da lei, mas no âmbito social. Ela conduz ao fim da alienação e reificação. Distanciando-se do pensamento idealista dos Hegelianos de Esquerda e de Bruno Bauer, Marx percebe que não será a ação intelectual que vai mudar o mundo, muito menos o Direito. Somente a revolução com um sujeito específico, que é o proletariado, seria capaz de fazê-lo.
A importância de voltar-se para esses aspectos concretos capazes de conduzir à revolução, são observados em Marx (2008, p. 46): “(...) as relações jurídicas, bem como formas de Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades”.
Isso dialoga com as conclusões a que Marx chegou no Capital, no sentido de que ideias do pensamento liberal que permeiam, muitas vezes, o texto da lei, são essenciais para justificar as formas de exploração, eis que os sujeitos de direito seriam “livres” para contratar, numa relação de suposta igualdade tutelada pela norma. Por exemplo, a força de trabalho trocada pelo salário não difere de outras mercadorias, mas não encontra a equivalência pretendida na realidade empírica (MARX, 2013).
Foi nesse sentido que o russo Pachukanis transportou para o Direito o método que Marx traçou para analisar a Economia. Segundo o autor, a natureza íntima do Direito está no processo do valor de troca, a partir de sua especificidade burguesa, chegando à conclusão de que forma jurídica depende da sociedade capitalista Não haveria, assim, horizontes jurídicos para a transformação social. Inspirando-se nessas diretrizes, sem adotar suas conclusões radicais, depara-se com a necessidade de extrapolar a compreensão do Direito enquanto norma, de analisar a historicidade do Direito em sua forma (PACHUKANIS, 1988).
Trazendo o debate para a realidade brasileira, considerando essa visão crítica sobre os Direitos Humanos e a emancipação, observa-se o extenso rol de direitos fundamentais não realizados na Constituição de 1988. Emerge a ideia de “ilusões constitucionais”, como a falsa percepção de que as Constituições poderiam servir de instrumento de transformação social, quando a situação é muito mais de fato do que de direito (LÊNIN, 1985).
Assim, os debates assentados em teorias e doutrinas do pensamento liberal, afastados de qualquer debate material voltado para os aspectos culturais, sociais e econômicos, colocam os direitos sociais como meras intenções. Ao vislumbrar o direito, especialmente o constitucional, necessita-se de um afastamento do que é idealista para não se cair em digressões inúteis (BELLO, BERCOVICI & MONT’ALVERNE, 2019).
Percebe-se que a elaboração marxiana abriu um leque de possibilidades de análise também para o Direito, especialmente do que concerne às relações Estado, Constituição e sociedade. Dentro disso, Bello, Bercovici e Mont’alverne (2019) vislumbraram como a norma constitucional pode se tornar uma grande ilusão, pois ela restou centrada em si mesma, levando a acreditar que a superação do capitalismo poderia se dar através da norma, esvaziando-se, assim, a atuação política.
Com base nisso, é preciso ressaltar que a afirmação de direitos sociais na Constituição de 1988 se estabeleceu como consequência da luta social e política derivada da íntima relação existente entre direito e capitalismo. Não se poderia, portanto, abordar o fenômeno da afirmação de direitos sociais pela ótica de elevação de ideais ou dignidade humana, pois o Direito é forma social que deriva das relações sociais específicas (MASCARO, 2015).
Mesmo no debate jurídico, faz-se necessária a análise das contradições da vida material (MARX, 2008). Há de se lembrar que os direitos previstos na Constituição, essa emancipação do Estado, não é uma emancipação consumada. A emancipação humana, como já mencionado, só se consuma quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato, reunindo na sua vida empírica, no seu trabalho, nas suas relações, tornando-se ser genérico, reconhecendo sua força própria como força social, não apartada da política (MARX, 2009).
Nesse espírito, Bello & Keller (2014) alertam para a importância da compreensão da cidadania em meio ao sistema capitalista, apontando para o uso progressista e transformador do direito sem desvalorização da política. Atenta para o uso empírico da emancipação, reconhecendo a possibilidade de emancipações parciais que limitem o poder do capital e freiem sua ingerência no cotidiano. Nesse sentido, as reformas jurídicas devem ser consideradas emancipatórias, se contiverem um caráter verdadeiramente revolucionário. Considera-se uma reforma enquanto emancipação parcial válida quando orientada no sentido da luta contra o capital e não centrada em si mesma.
A herança de Marx, assim, exige reflexão crítica e ação revolucionária, sua obra é a teoria da sociedade burguesa e de sua ultrapassagem pela revolução proletária, sendo necessária, mas não suficiente para compreender o mundo contemporâneo (NETTO, 2009). Como disse Marx (2008, p. 50): “(...)quis mostrar unicamente que minhas opiniões, de qualquer maneira que sejam julgadas e por pouco que concordem com os preconceitos ligados aos interesses da classe dominante, são fruto de longos e conscienciosos estudos”.
Embora não se possa transportar as conclusões marxianas em Para a questão judaica para a realidade brasileira do presente sem as devidas mediações, a crítica aos direitos humanos e a necessidade de um potencial verdadeiramente emancipador humano se mostram fundamentais, até mesmo nos dias de hoje.
Por tudo que foi visto, a leitura da obra é essencial aos estudiosos e pesquisadores do direito para que não se percam no estudo abstrato das normas, no dever-ser. Ao contrário, para que se pautem pelo substrato material da realidade humana. Assim, uma perspectiva aprofundada dos direitos humanos não deve ficar entre a ideologia e a política, mas vislumbrar a verdadeira emancipação humana.
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